Prólogo
Inês tinha acabado de se vestir e saía do quarto, dirigindo-se à cozinha.
O dia estava quente e calmo, pelo o que podia ver da janela do seu quarto. Deveria ser por estar a meio de Julho, quando o tempo é quente, mesmo de manhã, e quando ainda estão todos a dormir, desfrutando das “férias grandes”, principalmente de manhã. Mas Inês, por mais voltas que desse na cama, já não conseguia dormir mais. Era sempre assim, o primeiro mês de férias ainda não tinha acabado e ela tinha a sensação de já ter dormido o que chegasse para as férias todas. Afinal, para que é que se quer as férias? Para dormir o tempo inteiro, é que não é, de certeza. Pelo menos, assim era para Inês.
Não teve que andar muito para chegar à cozinha, já que a casa era pequena. O sol entrava alegremente pela janela da cozinha, inundando tudo com a sua luz matinal. Graça, a empregada doméstica da casa, encontrava-se de pé, na cozinha, com as mãos pousadas no balcão e o olhar perdido no que se encontrava para lá da janela. Graça só notou a presença de Inês quando esta, enquanto tirava uma caneca do armário, lhe falou:
- Bom dia! O meu pai, Graça? – Inês continuou o seu ritual das manhãs e dirigiu-se ao frigorífico, de onde tirou o pacote de leite – Ainda está a dormir?
Graça não se sobressaltou com a inesperada a aparição da jovem; apenas se virou, delicada e pensativamente, para Inês. A sua expressão era distante e os seus olhos preocupados – Inês não tinha reparado nisto ao entrar para a cozinha, pois os alegres raios luminosos que entravam pela janela tinham ofuscado toda a tristeza que preenchia o clima. Mesmo assim, a mulher respondeu:
- O teu pai… – era difícil para ela encontrar uma resposta, mas esta até não era a pior pergunta; com um suspiro longo e doloroso tentou prosseguir: - o teu pai está no quarto…
- Ainda?... – era estranho, para ela, o seu pai ainda não andar por lá, pela casa, recitando alguma deixa da última peça que tinha assistido, ou fazer outra coisa qualquer…, apenas era estranho que o seu pai, que era sempre o primeiro a acordar, sempre enérgico, ele que ia sempre “arrancá-las” (ela, a sua irmã Julieta e a sua mãe Mónica) da cama com a esperança que desta vez elas alinhassem num passeio de bicicleta às 9h da manhã, ainda estivesse no quarto. Mas não era isso que preocupava Inês agora: era Graça. Contudo, ela não sabia se devia ignorar e não se intrometer na vida de Graça, ou perguntar-lhe o que se passava…
O silêncio instalou-se entre as duas. Inês não dizia nada, porque não sabia a o que dar importância: à estranha ausência do pai, ou à estranha atitude de Graça. Graça, porém, sabia o que deveria dizer, mas não queria – talvez aquele silêncio pudesse ser prolongado ilimitadamente e não houvesse perguntas que exigissem respostas. Por fim, Inês decidiu-se por saber mais do pai:
- O que é que ele ainda es… – mas a meio arrependeu-se: Graça, não era simplesmente uma empregada doméstica, era uma amiga que sempre tinha cuidado dela e da irmã e sempre tinha posto “ordem” naquela casa, era uma amiga, cujas os sentimentos e preocupações não podiam ser ignorados – O que é que se passa, Graça? Está com uma cara… Estás… pálida.
Graça não conseguia responder – a azia que lhe inundava a boca, afogava as palavras. Mas tinha que responder.
- O teu pai está no quarto, já disse. – se não conseguia fazer com que o tempo parasse, ou menos podia disfarçar…então, começou a remexer numa gaveta, como se estivesse muito atarefada.
- Ok. – Inês fingiu acreditar na súbita actividade da outra, ignorando o brusco despertar de uma transe qualquer, e dirigiu-se ao quarto dos pais: se Maomé não ia à montanha, a montanha ia a Maomé. Era isso que ela ia fazer; desta vez seria ela a “arrancar” o pai da cama.
Caminhou até literalmente esbarrar com a porta – tentou abri-la, mas esta estava trancada.
- Graça. O que é que… – Inês preparava-se para gritar a Graça na cozinha, quando reparou que esta estava mesmo atrás dela; tinha a acompanhado.
- O teu pai está descansar. Deixa que ele saia do quarto e fale contigo.
- Graça, podes fazer-me o favor de me dizer o que é que se passa! Já estou a ficar sem paciência! – Vendo que ela não lhe respondia, gritou através da porta: - Pai! Está tudo bem? Porque é que tens a porta trancada? Tu nunca tens a porta trancada!
Nada – foi tudo o que veio do lado de lá.
- Graça, o que é que se passa! Estou a ficar preocupada! Porque é que o meu pai não responde? Tens a certeza que ele está no quarto? Ele está doente? E onde está a minha mãe? Onde é que ela está? Graça, porque é que não respondes? Graça? - A voz de Inês tornava-se cada vez mais histérica a cada nova pergunta. – O que é que se passa com o meu pai? O que é que se passa com esta casa? Porque é que estás a chorar? – Ela própria já estava a chorar, pelas perguntas sem respostas, pelo clima, pelo estado de Graça, por tudo – Porquê?
- Está… vai ficar tudo bem, não te preocupes.
- Porque é que não disseste “está”? Porquê? Por amor de Deus, diz-me o que é que se passa? Raios! O que…
Inês foi interrompida pelo seu pai, que saía do quarto. A sua cara estava diferente: estava amarelo e parecia muito mais velho. E a sua voz também estava diferente:
- A tua mãe não está. Nem nunca mais vai estar.
Inês não queria acreditar nas palavras do pai. O que é que ele queria dizer ao certo? A sua mãe não podia estar…morta! Ele só podia estar a brincar. Mas que espécie de pai é que brinca com uma coisa dessas? O seu é que não era de certeza! O que é que se passava com ele?
- Eu quero falar com a minha mãe! Onde é que ela está? – Ela não estava para alinhar naquela brincadeira. Espreitou para dentro do quarto à procura da mãe, mas…
- A TUA MÃE NÃO ESTÁ! – Agora o tom de voz do seu pai era diferente: ele estava a gritar furiosamente, o que assustou muito as duas – NÃO ESTÁ! ÉS SURDA?! NÃ-O ES-TÁ! NEM VAI ESTAR! ELA NÃO VOLTA MAIS!! NÃ-O VOL-TA!
Inês continuava a recusar-se a acreditar na morte da sua mãe:
- Pai, se vocês se zangaram, eu não tenho nada a ver…
- Nós não nos zangámos. – Agora Artur já não gritava, mas as suas palavras não deixaram de ser cortantes: - Ela fugiu. Ela fugiu de casa. Ela abandonou-nos!
Inês estava chocada. Ela já não percebia nada. Mas não ia desistir: preparava-se para voltar inquirir o pai, que já chorava – talvez pelo choque das suas próprias palavras –, quando Graça tomou conta da situação e disse-lhe carinhosamente para esperar por ela na cozinha. Afastou violentamente Graça do seu caminho – nem ela a podia fazer parar –, mas esta esbofeteou-la na cara e ordenou que ela fizesse o que lhe dizia. E ela fez.
Passado pouco tempo já estavam as duas na cozinha. Inês continuava a chorar, mas desta vez, silenciosamente, ao contrário de Graça, que se tinha controlado – ela tinha que se controlar. E num tom pausado e calmo disse:
- Eu sei que isto é difícil. É para todos nós, mas principalmente para ti e para a tua irmã. Mas, não é assim que as coisas se vão resolver. Temos que estar calmos – Inês queria gritar “como é que posso estar calma?”, mas não tinha forças e assim continuou a ouvi-la – e… Primeiro, é melhor contar-te tudo o que sei, do princípio. Hoje de manhãzinha cedo, quando cheguei, o teu pai foi ter comigo ao hall, pensando que eu era a tua mãe. Ela não estava em casa e… o teu pai pensou que ela tinha ido comprar pão ou qualquer coisa assim. Mas era eu. Então, ele voltou para o quarto e encontrou uma carta, em cima da cómoda… Ele veio ter comigo, assustado e perguntou se eu sabia o que aquilo era. Eu não sabia. Ele leu a carta, aqui à minha frente, e… Não sei o que estava lá escrito, mas o teu pai disse-me que…Oh! Meu Deus!... Que a tua mãe tinha ido embora, para sempre. A sua voz era calma e parecia alienada, mas… era verdadeira. Via-se que era verdadeira. Depois, ele voltou para o quarto, onde ficou trancado… até agora.
«Por isso, … Não é nenhuma brincadeira, Inês. Eu nunca brincaria com isto. É verdade, querida… é verdade – com isto, Graça dirigiu-se a Inês e abraçou-a. As duas ficaram assim durante muito tempo. Depois, a mais velha beijou a testa da mais nova, tentou fazer com que esta terminasse o seu pequeno-almoço e levou-a até ao seu quarto.
Inês, que já estava no quarto há mais de meia hora, silenciosa (e sem a companhia da sua protectora), olhou para a sua pequenina irmã, que dormia descansadamente no seu leito quente, ingénuo e infantil. A sua pequenina Julieta!, era realmente tão pequenina…e ingénua. Mal ela sabia… E quando ela soubesse…
Um medo intenso tomou rapidamente conta de si. Inês tinha os músculos tensos e escaldantes enquanto que um vazio se abria no seu peito, cada vez mais, e deixava entrar uma sensação gelada e horrível. Estava quente e gelada, tensa e débil, confusa, mas ao mesmo tempo, a terrível verdade gritava dentro de si. Então, sem tempo para mais nada pegou nas chaves e no passe, que estavam em cima da sua mesa-de-cabeceira, e correu para fora de casa. Não sabia, se Graça tinha reparado, não sabia o que ia fazer, não sabia nada… Deixou-se guiar pelos seus pés; caminhava ao ritmo louco do pulsar do seu coração. Um pulsar que sentia por todo o lado, nas mãos, na barriga, na garganta, na pele… gritante e dominante na sua cabeça. Inês gemia. Não sabia como tinha forças… Mas entrou no primeiro autocarro que lhe apareceu à frente; sentou-se num banco e tentou deixar-se relaxar…mas era impossível! Os seus músculos pareciam que eram feitos de pedra, eles já estava comprimidos fixamente.
As paragens passavam, assim como o tempo, mas Inês não se mexeu um milímetro se quer. Quando a última paragem apareceu, Inês viu-se forçada a sair do autocarro. Mas logo a seguir apanhou outro. Não sabia para onde ia, mas nem queria saber…Só queria que a levassem dali.
Mais uma vez, a estação terminal e a saída forçada. Inês ficou à espera de outro instrumento que a levasse dali, mas mais nenhum autocarro apareceu. Ela não reconhecia aquele lugar, que era panorâmico e vazio. Deixou-se escorregar até ao chão onde ficou quieta apenas segura pelas leis da física.
O tempo passou.
O sol ilusionista que tinha inundado alegremente aquela cozinha de manhã, já tinha sido substituído por uma lua esbatida e mais verdadeira. Inês estava a voltar para casa. Casa? O que significa essa palavra? É apenas um espaço físico, ou o conforto e o aconchego de um amor que os seus habitantes dão uns aos outros. Inês já não sabia mesmo nada…
À porta do prédio estava sentada a uma menina, de seus 10 anos, com a cabeça apoiada nas mãos e os cotovelos nos joelhos. A sua pequena Julieta!... A sua Julieta olhava para a rua, à espera.
- Estou à espera da mãe. Ela deve estar quase a chegar – a sua voz suou na noite, sem aviso, era estranhamente calma. Inês não tinha perguntado nada. Tinha se aproximado apreensiva… não sabia como a irmã tinha reagido. Mas agora, ao descobrir os olhos da sua irmã…
Aqueles olhos sem brilho, sem vestígio nenhum do seu brilho natural, clarificaram a mente de Inês. Estava ali tudo. E agora ela tinha certeza: a sua mãe deixara-os e não voltava mais.